Tensão entre a pedagogia tradicional e as mais recentes tornou ainda mais intensa a ênfase em resultados individuais. Educação de fato democrática requer investir na escola pública, e orientá-la por lógicas contrárias à competição.

Por Roberto Rafael Dias da Silva

Nas últimas décadas, no discurso pedagógico em circulação no Ocidente, adquiriu centralidade a questão da aprendizagem ao longo da vida e do princípio do aprender a aprender. A linguagem da aprendizagem tornou-se o principal referente para explicar as experiências escolares, deixando pouco espaço para que conversássemos sobre os propósitos educacionais e as finalidades formativas. O filósofo Gert Biesta tem sido uma das principais vozes, na literatura internacional, a nos alertar sobre os limites da “learnification”, isto é, que a boa educação não pode ser considerada somente através de critérios individuais definidos por exames de larga escala e/ou por demandas subjetivas (socioemocionais e neuroeducacionais, mais recentemente) dos estudantes.

Em seu ensaio mais recente, intitulado “Reconquistando o coração democrático da educação”, Biesta esclarece que “a linguagem da aprendizagem tem contribuído significativamente para a emergência de uma ‘dieta’ educacional um tanto restritiva, em que o único foco da educação se tornou o de produzir resultados mensuráveis para as aprendizagens em um pequeno número de áreas curriculares”. A aprendizagem é uma meta bastante valiosa das práticas educativas, no entanto, o filósofo auxilia-nos a delinear os seus excessos. Ou ainda, o quanto a aprendizagem – em sua dimensão exclusiva – pode nos colocar diante do empobrecimento das teorias educacionais democráticas.

A busca desenfreada pela eficácia ou pela inovação educativas, alicerçadas em métricas de desempenho, podem estar nos conduzindo a uma “compulsão modernizadora” (SILVA, 2021), apostando em aparatos técnicos ou dispositivos tecnológicos que não conseguem nutrir a teoria educacional das questões concernentes aos sentidos e aos propósitos da escolarização. Mais uma vez recorrendo ao filósofo: “é uma triste situação, especialmente quando os estudantes sucumbem sob a pressão do bom desempenho em culturas em que o fracasso não é tolerado”. O aprender a aprender, apesar de sua historicidade próxima ao campo progressista, atualmente precisa ser situado em uma gramática mais plural.

Bernard Charlot, no recém-lançado “Educação ou Barbárie? – uma escolha para a sociedade contemporânea”, descreve os modos pelos quais as tensões entre as pedagogias tradicional e nova são reconfiguradas atualmente, nas condições de centralidade da lógica do desempenho e da concorrência. A pedagogia que hoje predomina tem enfatizado o desejo dos estudantes – valorizando questões como a criatividade, a inovação ou o trabalho em equipe. Todavia, esta questão colide com as exigências generalizadas do desempenho. As escolas, no desenvolvimento de sua pauta curricular, já não conseguem situar seus propósitos educativos na dialética entre norma e desejo que caracterizava o discurso pedagógico da Modernidade. Charlot avança nesta descrição sinalizando para a ausência do debate antropológico na pedagogia contemporânea, o que nos permite assistir a uma crise de sentido.

Em tal configuração sociocultural, a ‘crise de sentido’, quer dizer, a ausência de representações antropológicas funcionando como suportes de identificação, e a pressão permanente pelo desempenho e sucesso tendem a gerar estresse, angústia, depressão e às vezes cinismo e violência. Essa crise de sentido induz igualmente efeitos de ruptura. Às vezes, são abandonos na vida pessoal e profissional: larga-se tudo para viver outra vida, que tenha sentido (CHARLOT, 2020, p. 68).

A crise de sentido referida por Charlot remete-nos novamente às preocupações elencadas por Biesta acerca dos excessos argumentativos em torno da aprendizagem vitalícia. Não resta dúvidas de que a aprendizagem ocupa um lugar privilegiado no debate educacional; entretanto, precisa ser reenquadrada para além das demandas do desempenho e suas exigências permanentes. Importante salientar ainda que a crítica às abordagens contemporâneas, na literatura educacional, precisa seguir apostando nas liberdades individuais e no projeto da democracia. Mais uma vez dialogando com Biesta, este projeto – que é sempre frágil e precário – trata-se do “constante e difícil ‘dar-e-receber’ para garantir que possa haver liberdade igual para todos”.

Por fim, gostaria ainda de enaltecer os urgentes desafios na construção de uma agenda mais plural para a pedagogia contemporânea. Nos marcos de uma escola democrática, questão incontornável para nosso país, precisamos reingressar nas lutas políticas em torno da aprendizagem – para além da lógica da learnification e suas métricas de desempenho que nos assediam. Os debates acerca da escola democrática, sobretudo nos controversos tempos que hodiernamente experimentamos, requerem um renovado interesse pela dimensão pública da educação e um alargamento dos propósitos formativos que nos permitam redesenhar o novo século. Em termos educacionais, enfim, este é o principal desafio a ser enfrentado pelo campo progressista no Brasil.

Referências:

BIESTA, Gert. Reconquistando o coração democrático da educação. Educação Unisinos, v. 25, 2021, p. 1-7. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/educacao/article/view/edu.2021.251.01

CHARLOT, Bernard. Educação ou barbárie? – uma escolha para a sociedade contemporânea. São Paulo: Cortez, 2020.

SILVA, Roberto Rafael Dias da. A compulsão modernizadora na educação das juventudes no Brasil: uma crítica curricular. In: KRAWCZYK, Nora; VENCO, Selma (Orgs.). Utopias e distopias na educação em tempos de pandemia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2021, p. 17-36. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/352523699_A_compulsao_modernizadora_na_educacao_das_juventudes_no_Brasil_uma_critica_curricular

 

FONTE: outraspalavras.net/

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